quarta-feira, dezembro 22, 2004

BEEP BEEP!

Outro dia passei algumas horas de uma tarde chuvosa assistindo a um desses canais que passam desenhos 24 horas por dia, e tava passando o que me pareceu ser uma “Maratona do Papa-Léguas”.

Já faço neste primeiro momento meu manifesto contra o fato de o desenho se chamar “Papa-Léguas”, uma vez que o personagem que me parece mais interessante é justamente o Coiote. Desenvolverei melhor essa idéia mais adiante.

Passaram-se uma hora e meia, e o que começou como alguns leves esboços de riso foi se transformando numa espécie de angústia.

Certa vez eu ouvi alguém falar numa conversa de bar que todas as relações entre predadores e presas nos desenhos animados eram só reflexos da clássica busca do Capitão Ahab pela sua Moby Dick. Bom, preferi nem levar muito a sério o comentário, porque achei que a referência literária era mais pra chamar a atenção para quem a tinha feito do que para acrescentar algo à conversa. Na tarde chuvosa em questão, essa referência atiçou um pouco mais a minha reflexão. Enquanto o Coiote fazia seu rotineiro merchandising dos produtos ACME, pus-me matutar sobre a comparação feita por meu amigo.

Eu estava certo em não levá-la a sério.

POR QUE O COIOTE NUNCA PEGA O PAPA-LÉGUAS???

A busca incansável do raquítico lupino pela sua presa se dá de forma muito mais "incômoda" que a caçada pela baleia no romance de Herman Melville.

No livro, ficam bem claros todos os fatores que originaram a caçada. Moby Dick arrancou uma perna de Ahab, e é o sentimento de vingança que motiva toda a história. Além disso, por mais que parecesse ser a busca de um caçador por sua presa, o que havia na verdade era a busca por uma revanche, por um novo confronto. Ahab não pretendia simplesmente matar a baleia. Queria, sim, uma outra chance de enfrentá-la, e, assim, uma chance de vencê-la e se vingar. No livro, todo o desenrolar da história parece se dar de forma encadeada, onde ficam bem explícitas as relações de causa entre os eventos, principalmente a própria caçada.

O desenho não diz nada, e por isso mesmo é tão perturbador. Você tem um Coiote correndo atrás de uma ave. Só isso.

A princípio você pode colocar a fome do predador como uma causa, mas pensa bem: será que não existem outras presas naqueles vastos desfiladeiros e penhascos que sejam muito mais fáceis de alcançar? E, ainda que não fosse esse o caso, já não teria o Coiote morrido de fome há muito tempo? Permanecia a perturbação.

Como vimos, não existe nenhuma causalidade aparente diante desta busca. O Papa-Léguas se apresenta como objeto de um desejo puro, injustificável. E todas as suas ações e pensamentos têm essa busca enquanto força motriz. Não deixa de ser irônico que seu fracasso seja, no final das contas, o que o mantém vivo, a longo prazo.

E não deixo de pensar em como somos todos nós um bando de coiotes, e como cada um de nós precisa de um papa-léguas nos chamando, mesmo que seja para nos fazer cair de penhascos. Mas que também nos motive a escalar todo o penhasco de volta.

Agora imagine a cena: o Coiote finalmente, usando uma das formidáveis invenções da ACME, finalmente consegue alcançar o Papa-léguas. Mata-o, e agora terá uma refeição farta. Os primeiros instantes são de pura euforia.

Duas semanas depois, o Coiote, alguns quilos mais gordo, está deitado em sua caverna. Não se levanta há dias. Não tem vontade de fazer mais nada. Sua caixa de correios está lotada de pacotes das empresas ACME, mas as caixas estão lacradas. Afinal, porque abri-las?

O Coiote se suicida, cortando seus pulsos com um velho Corta-Tudo ACME de 1974. Pouco antes de desmaiar, ele ainda virava seus ouvidos para a saída da caverna, como que procurando ouvir alguma coisa. Mas não se ouvia nada além do vento.

Enfim, tudo isso foi uma tentativa de resposta para a pergunta central deste post. O Coiote não pode pegar o Papa-Léguas, pois, sem o Papa-Léguas, não existe mais o Coiote. Só uma carcaça ambulante esperando a morte.

NOTA PARA MIM MESMO: Não assistir mais desenhos animados quando estiver deprimido.

***
Outro ponto interessantíssimo que se pode destacar é o fato de o Coiote só se submeter à lei física da gravidade quando olha para baixo e vê que não está mais pisando no desfiladeiro, e as incontestáveis influências dessa cena clássica no filme Matrix. Mas fica pra outra hora.


2 Comments:

Blogger Fábio François Fonseca said...

a relação coiote-papaléguas é muito mais básica do que a de acab-mobydick; como você observou, no drama do coiote estamos tratando de desejo em estado bruto, coisa de psicanálise.
o drama de acab é mais complexo e você notou bem: tem sentimento de justiça e vingança da parte dele e sua presa não é um animal qualquer mas manifesta toda grandiosidade da natureza que nos reduz à insignificância (porque não lembrar do juízo sobre o sublime de kant?).
show de bola, davi. está virando o pós-estruturalista desconstrutivista dos desenhos infantis.
pão e circo,
f.

23 de dezembro de 2004 às 18:58  
Blogger Fabio Rocha said...

Os desenhoe evoluíram bastante desde o Papa-Léguas, né? :) Abraço

29 de março de 2006 às 08:30  

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